A história da cristianização do mundo tem páginas obscuras que envergonham os cristãos. Páginas manchadas pela intolerância e pelo espírito mundano de dominação dos mais fracos. Povos que não tiveram a sua cultura e particularidade respeitadas, que sofreram a imposição dos dominadores cristãos “guela abaixo”. Foi com a cruz em uma mão e com a espada em outra que muitos se “converteram” ao cristianismo. Foi vendo os seus irmãos sendo espoliados, arrastados, escravizados, torturados e mortos, que muitos “aceitaram” a Cristo. Nem protestantes nem católicos podem se esquivar desta responsabilidade. Todos os ramos cristãos viram nas suas histórias o desrespeito ao seu semelhante “em nome do Senhor”.
É claro que todas as religiões, buscando a sua afirmação, praticaram a intolerância em algum momento. Esta vergonha não é exclusiva dos cristãos. Contudo, para os cristãos o vexame é maior porque nós carregamos conosco o nome de Jesus, o Deus que encarnou, se fez homem por amor à humanidade. Foi, justamente, este amor que faltou em muitos casos. Com este espírito dominador os imperadores a partir de Constantino usaram o cristianismo para conservar a unidade do império romano. As legiões romanas marchavam sobre as cidades, pilhando o que viam pela frente, empunhando o Labarum. Diz a história que numa noite, Constantino sonhou com este símbolo formado pelas iniciais gregas do nome Cristo. No sonho uma voz dizia: “Neste sinal conquistarás”.
Este espírito de tempos em tempos ressurgia e para conquistar e dominar, “Cristo” foi a arma mais potente a ser utilizada. A África foi saqueada, dizimada e depois dividida a régua por nações católicas e protestantes, que, dentre várias coisas, patrocinaram, por exemplo, na África do Sul de 1948 a 1994 o Apartheid (regime de segregação racial). A América recebeu portugueses e espanhóis católicos que forçaram, muitas vezes, os índios à conversão. Tribos inteiras foram dizimadas. Estima-se, por exemplo, que no Brasil existiam entorno de cinco milhões de índios, hoje este número caiu para menos de um milhão. Os Estados Unidos da América não ficam fora desta realidade. Os ingleses, protestantes, dizimaram também os índios “pele vermelha”, como eram chamados pejorativamente os nativos da América do Norte.
Em nome de Jesus e do “avanço do Reino” muita crueldade foi cometida e ainda tem sido cometida. Os novos dominadores não são mais as velhas nações imperialistas, mas, são religiosos que querem fazer avançar os seus impérios pessoais. É gente que “em o nome de Jesus” pensa poder converter as pessoas à força, não a força física, mas a força psicológica, religiosa e cultural. Um “evangelho” desprovido de amor e graça, mas cheio de prepotência, intolerância e jugo. Em muitos casos depois que as pessoas têm acesso a este tipo de evangelho as suas vidas mudam, mas mudam pra pior. Elas passam a conviver com o medo, assombradas com tudo ao seu redor. Um espírito de auto-condenação sufocante toma conta destas vidas. Afastam-se da família e dos amigos, pois fica insuportável o convívio com estas pessoas. As suas histórias são apagadas.
O verdadeiro evangelho gera vida (eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância. Jo 101.10). O verdadeiro evangelho liberta (E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará. Jo 8.32). O verdadeiro evangelho se sustenta na graça de Deus (Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus. Ef 2.8). É este o evangelho do Reino. É este o evangelho que tem poder de transformar as pessoas não à imagem e semelhança de uma denominação, mas à imagem de Jesus Cristo. Era este o evangelho anunciado pelos santos apóstolos. Foi este evangelho que Paulo e Barnabé anunciaram aos habitantes de Listra.
As pessoas eram tão cativas da religião, que quando viram o milagre operado por intermédio de Paulo e Barnabé, não pensaram duas vezes, mas fizeram a única coisa que sabiam fazer diante de um acontecimento extraordinário, se prepararam para cultuar. Foi desta forma que eles aprenderam. Na cultura deles era com sacrifícios e ofertas que se agradavam os deuses após uma grande dádiva. Eles estavam naquele dia sinceramente gratos aos deuses por estarem no meio deles. Era uma honra muito grande. No entendimento deles, Barnabé e Paulo eram, respectivamente, a encarnação de Júpiter (Zeus) e Mercúrio (Hermes). O deus dos céus e o seu mensageiro. Eles não conheciam outra realidade religiosa. A sua religião os ligava à terra, aos seus ancestrais, à sua história e à sua cultura.
Conservar a sua religião era manter um laço social que unia um povo. Conservar aquela religião era uma questão de identidade. Era algo muito forte e tentar acabar com isso usando a força era violentar a consciência daquele povo. Ainda que entendendo que tudo aquilo era meramente religioso, humano e vão, Paulo e Barnabé sabiam que tudo tinha valor para aquelas pessoas.Assim, para anunciar-lhes Jesus, que é muito mais que uma religião, que é a própria razão de ser do homem em toda e qualquer cultura, os apóstolos souberam com todo jeito falar de forma que a mensagem fosse compreendida. Eles agiram com respeito e sabedoria para anunciar o Cristo.
Assim como eles, nós vivemos num mundo religioso. Aliás, acredito até que temos vivido um despertamento da religiosidade. A pós-modernidade revelou ao homem que não é possível viver friamente desprezando o viés da religiosidade. Ela tem redescoberto que a religião é estruturadora da sociedade e do indivíduo. As pessoas estão redescobrindo as religiões. Elas estão buscando uma religiosidade que lhes dê sentido. O sentido que o dinheiro não deu, que a liberação sexual não deu, que o sucesso profissional não deu, que um parceiro não deu, etc.Religiosidade é algo próprio do homem. O homem é um ser religioso. Há em cada um de nós o que Calvino chamava de “a semente da religião”. Há um senso do divino implantado no homem, mas que o pecado manchou e limitou de forma que agora a humanidade não pode por si só se ligar a Deus.
A religiosidade no sentido pós-queda é, então, toda tentativa humana de se conectar com Deus à parte da graça de Deus. Por maior que seja o desejo do homem de se ligar ao divino, é impossível ao homem esta religação. Para isso só há um caminho, Jesus Cristo (Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim. Jo 14.6). É este caminho que precisamos anunciar. A experiência de Paulo e Barnabé nos traz ricas lições para o anúncio do evangelho:
1. É PRECISO MOSTRAR EMPATIA ÀS PESSOAS – “Nós também somos homens como vós, sujeitos aos mesmos sentimentos”. Paulo e Barnabé mostraram-se sensíveis àquela realidade. As palavras são claras, o tom também! Eles se colocaram no meio daquelas pessoas como iguais. Em nenhum momento se percebe qualquer posição de superioridade em Paulo ou em Barnabé. Eles não se puseram a condenar ninguém, o que eles queriam era dar-lhes a compreensão da verdade. Paulo e Barnabé estavam dizem com estas palavras: “nós sabemos o que é que os move”. Eles não os condenavam. Esta atitude era sincera, o que é visto com o fato dos dois terem rasgado as próprias veste em sinal de lamento e tristeza. Quem fala de Cristo deve se comover com a realidade de alguém que não o conhece. (Vendo ele as multidões, compadeceu-se delas, porque estavam aflitas e exaustas como ovelhas que não têm pastor. Mt 9.36).
2. É PRECISO OUVIR O QUE AS PESSOAS QUEREM – “Senhores, por que fazeis isto!”. Os apóstolos ouviram as palavras daquelas pessoas que falavam em língua licaônica, muito certamente, eles precisaram de alguém que traduzisse o que as pessoas falavam. Ainda que a pergunta feita tenha sido retórica, ouve um momento em que eles ouviram e entenderam o que as pessoas queriam fazer. Paulo e Barnabé estavam interessados em ouvir o motivo daquela atitude não para terem um conhecimento acerca da religião deles, mas para terem uma compreensão dos sentimentos que estavam por trás daquela religiosidade. É preciso ouvir as pessoas. As suas lutas, as suas angústias, os seus gestos e as suas religiosidades dizem muito acerca delas, daquilo que elas buscam. Há muito coisa abaixo da superfície das palavras. Para Paulo e Barnabé as pessoas eram mais importantes que as suas convicções religiosas. De que forma temos ouvido as pessoas?! Estamos mais interessadas nelas ou naquilo que podemos ensinar a elas?! Queremos comunicar-lhes a Cristo ou queremos um discípulo pra nós?!
3. É PRECISO CONFIAR NO PODER DO EVANGELHO – “Vos anunciamos o evangelho para que destas coisas vãs vos convertais ao Deus vivo”. Romper com a religião era algo muito difícil, pois era algo arraigado às tradições mais antigas e este rompimento implicaria numa rejeição social. Paulo e Barnabé entenderam que este rompimento não ocorreria por força física ou argumentativa, mas simplesmente pelo poder inerente ao evangelho (Porque o nosso evangelho não chegou até vós tão-somente em palavra, mas, sobretudo, em poder, no Espírito Santo e em plena convicção, assim como sabeis ter sido o nosso procedimento entre vós e por amor de vós. 1Ts 1.5. Pois não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê. Rm 1.16). Quando confiamos no poder do evangelho descansamos no fato de sabermos que não é a nossa habilidade que converte, mas esta é uma ação divina. Entendemos, assim, que a mudança vem de dentro pra fora e ocorre no tempo certo. O evangelho é mais que envolvimento emocional ou lógico e confronto pessoal.
4. É PRECISO ENTENDER QUE É DEUS QUEM BUSCA, NÃO NÓS – “O Deus vivo, que fez o céu, aterra, o mar e tudo o que há neles; o qual, nas gerações passadas, permitiu que todos os povos andassem nos seus próprios caminhos; contudo, não se deixou ficar sem testemunho de si mesmo, fazendo o bem, dando-vos do céu chuvas e estações frutíferas, enchendo o vosso coração de fartura e de alegria”. Os apóstolos buscaram na própria história daquele povo as manifestações do cuidado divino sobre eles. As histórias de vida daquelas pessoas eram fruto das suas próprias escolhas e do seu contexto sócio-cultural. Contudo, Paulo e Barnabé mostraram que Deus vinha ao longo da história cuidando delas (Porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre os homens, porque Deus lhes manifestou. Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas criadas. Rm 119,20). O Senhor vem acompanhando a história de cada pessoa a quem falamos de Cristo. Cabe a nós buscarmos nestas histórias pontos de conexão entre a pessoa e Jesus (Não fostes vós que me escolhestes a mim; pelo contrário, eu vos escolhi a vós outros e vos designei para que vades e deis fruto, e o vosso fruto permaneça. Jo 15.16).
Seguindo estas orientações, podemos anunciar a salvação em Cristo a todo aquele que busca um sentido para a sua vida, sem, contudo, desrespeitá-lo. Que Deus nos dê a graça de sermos instrumentos úteis e amorosos para o avanço do seu Reino.
Emerson Profírio
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